
O uso de playback em apresentações ao vivo voltou ao centro dos debates após uma série de episódios recentes e uma declaração contundente de Ed Sheeran. Em entrevista ao canal de YouTube Beta Squad, o cantor britânico afirmou:
“Muitos artistas profissionais usam playback, mas não admitem. Não é o meu caso. Não conseguiria fazer isso, porque [meu show] sou eu com um pedal de loop e uma guitarra. Mas eu nunca cancelaria um show por causa da minha voz. Eu sempre insistiria, mesmo que estivesse meio rouco.”
A declaração reforça a distinção entre artistas que assumem os riscos do ao vivo e aqueles que optam por manter a perfeição técnica a qualquer custo.
Mas afinal, por que o tal playback, um recurso técnico tão antigo, ainda é motivo de polêmica? Vamos entender os vários lados dessa questão.
Playback: uma breve história
Antes de aprofundar nos debates sobre o uso do recurso técnico em apresentações ao vivo e seu impacto na carreira dos artistas, vamos entender como surgiu e como a tecnologia evoluiu ao longo dos tempos.
O uso do playback começou ainda nos primórdios do cinema sonoro, nas décadas de 1930 e 1940, quando artistas gravavam suas vozes em estúdio e as dublavam durante filmagens de musicais. Era uma necessidade técnica, já que os microfones da época não captavam bem o som ao vivo durante as gravações.
Nos anos 1950 e 1960, com o avanço da televisão, programas musicais como o americano American Bandstand e o britânico Top of the Pops popularizaram o uso do playback. Nestes casos, artistas dublavam suas próprias canções para manter o som uniforme nas transmissões ao vivo, já que não havia infraestrutura para múltiplas apresentações com qualidade sonora.
A partir dos anos 1980, com o crescimento de turnês espetaculares e coreografadas, o playback começou a ser usado também em shows ao vivo. Estrelas do pop como Madonna e Janet Jackson incorporaram o recurso como forma de garantir consistência vocal durante performances fisicamente exigentes.
Desde então, o playback se consolidou como ferramenta técnica, mas também como fonte contínua de controvérsia — especialmente quando seu uso não é transparente ao público.
Casos emblemáticos e recentes
Michael Jackson, conhecido por suas performances coreografadas e espetaculares, foi por diversas vezes acusado de usar playback — especialmente em trechos de shows ao vivo televisionados. Segundo biógrafos, ele costumava alternar vocais ao vivo com bases gravadas, principalmente em músicas com grande exigência física. Isso, no entanto, nunca diminuiu seu status de ícone, e para muitos, o espetáculo visual fazia parte da experiência completa.
Em 1989, a dupla Milli Vanilli protagonizou um dos maiores escândalos da história da música pop. Rob Pilatus e Fab Morvan ficaram mundialmente famosos com hits como Girl You Know It's True e chegaram a vencer o Grammy de Artista Revelação em 1990. No entanto, foi revelado que eles não eram os verdadeiros intérpretes das músicas — suas vozes eram dubladas sobre gravações feitas por cantores de estúdio contratados pela gravadora. O uso de playback era apenas parte da farsa, que envolvia toda a construção do projeto artístico. O Grammy foi revogado, a dupla caiu em descrédito, e o caso forçou a indústria fonográfica a rever práticas de transparência e autenticidade.
Em 2013, Beyoncé admitiu ter usado voz pré-gravada ao cantar o hino nacional dos Estados Unidos durante a posse do presidente Barack Obama. A artista explicou que, por questões técnicas, não teve tempo de ensaiar com a orquestra e preferiu garantir a perfeição vocal com uma base gravada.
Em 2016, Mariah Carey passou por um dos momentos mais constrangedores da carreira ao enfrentar falhas técnicas em sua apresentação de Réveillon na Times Square. O playback falhou, e a artista ficou visivelmente desconcertada diante do público e das câmeras.
Artistas como Britney Spears também costumam ser alvo constante de críticas por apresentações em que a base vocal parece substituir completamente a performance ao vivo. Ainda assim, a cantora mantém uma base sólida de fãs e segue relevante na história da música pop.
Durante o Super Bowl de 2020, Jennifer Lopez e Shakira geraram comentários sobre o uso de playback. Apesar da grandeza do espetáculo e da intensa coreografia, muitos espectadores questionaram a autenticidade vocal da performance.
Mais recentemente, SZA e Dua Lipa foram alvo de comentários nas redes sociais por supostamente utilizarem vocais pré-gravados durante apresentações da era SOS e Radical Optimism, respectivamente. Nenhuma das artistas confirmou integralmente o uso de playback, mas os vídeos virais nas redes sociais reacenderam o debate sobre o que o público realmente espera de uma performance "ao vivo".
Rock, trilhas e autenticidade
E no universo do rock, o debate também encontra eco. Embora menos associados ao uso de playback, artistas do gênero não estão isentos de polêmicas. Em 2008, após um show da banda Whitesnake (em destaque acima), o vocalista Joe Lynn Turner (ex-Rainbow e Deep Purple) acusou publicamente David Coverdale de utilizar backing tracks não apenas para vocais de apoio, mas também para os vocais principais. A crítica gerou forte repercussão entre os fãs e a imprensa especializada. Coverdale rebateu as alegações, afirmando que as faixas eram usadas apenas como reforço técnico e de ambiência, não para encobrir a performance principal. O episódio levantou discussões sobre os limites do suporte tecnológico em shows de rock e o desgaste natural da voz com o passar dos anos.
A banda Iron Maiden, apesar de sua reputação de autenticidade ao vivo, também utiliza trilhas pré-gravadas em seus shows — especialmente para introduções, efeitos sonoros e ambiências. Embora não envolvam a voz de Bruce Dickinson, esses recursos ajudam a sustentar a atmosfera das músicas mais épicas e complexas, como The Number of the Beast ou The Book of Souls. Isso mostra que até mesmo nomes consagrados e respeitados do rock recorrem a soluções tecnológicas para oferecer uma experiência imersiva ao público.
Mais recentemente, bandas de rock moderno com influências de música eletrônica passaram a incorporar trilhas pré-gravadas em seus shows, como sintetizadores, batidas eletrônicas e efeitos sonoros que não podem ser reproduzidos integralmente ao vivo. Grupos como Muse, Imagine Dragons e The 1975 são exemplos de nomes que equilibram instrumentos ao vivo com elementos digitais. Essa prática, embora comum, gera divisões entre os fãs: enquanto as novas gerações encaram com naturalidade, parte do público mais tradicional critica a perda da espontaneidade.
Debate técnico ou questão de imagem?
A reflexão que surge é: essa discussão realmente afeta a carreira dos artistas? Em casos extremos, sim. No entanto, na maioria das situações, a repercussão parece se restringir a bastidores e a discussões técnicas. Muitos nomes do pop continuam a quebrar recordes de bilheteria mesmo sob suspeita ou confirmação de uso de playback.
Mas afinal, existem momentos em que o uso do playback é justificável? A resposta é sim — e passa por questões logísticas e técnicas. Grandes eventos televisionados, como o Super Bowl, por exemplo, têm janelas de tempo extremamente curtas para montagem e ensaio, além de exigências rígidas de qualidade de som. Nesses casos, o playback (ou a voz pré-gravada) funciona como uma medida de segurança para garantir que tudo saia como planejado, evitando falhas catastróficas.
Além disso, artistas com coreografias intensas, como Britney Spears ou Madonna, enfrentam o desafio físico de cantar enquanto dançam, o que pode justificar o uso de bases vocais como reforço.
Por outro lado, a tecnologia oferece recursos adicionais que também "dão uma força" ao artista — sem necessariamente recorrer ao playback integral. Softwares como Auto-Tune, Melodyne, reverbs, delays, backing vocals programados e até dobras de voz ao vivo ajudam a corrigir imperfeições ou dar mais corpo à performance. Em shows, essas ferramentas são operadas por engenheiros de som e muitas vezes passam despercebidas pelo público.
Especialistas apontam que, embora essas tecnologias modifiquem o som ao vivo, elas ainda permitem que a voz original esteja presente, diferentemente do playback, em que a voz gravada substitui totalmente a performance vocal real. A fronteira entre o auxílio técnico e a substituição total, no entanto, é cada vez mais tênue — o que gera embates até entre profissionais do setor.
No fim, a diferença está no grau de transparência e no valor que o artista atribui à autenticidade da performance.
E os fãs, como reagem?
O fator emocional também conta. Fãs costumam ser mais tolerantes com seus artistas preferidos, relevando o uso de playback em nome do conjunto da obra, do espetáculo visual ou da experiência como um todo. Shows de grande porte envolvem coreografias, cenografia e efeitos visuais que, muitas vezes, inviabilizam a execução vocal plena.
Contudo, há também um público mais exigente, especialmente quando o ingresso é caro e a promessa é de uma performance "ao vivo". Para esses, qualquer sinal de dublagem pode soar como quebra de contrato emocional.
Um dilema contemporâneo
Num mundo onde tudo pode ser viralizado, inclusive falhas no palco, o uso de playback se torna uma ferramenta tanto de proteção quanto de risco. Ao mesmo tempo, artistas como Ed Sheeran levantam a bandeira da performance crua e autêntica, reafirmando que a imperfeição também faz parte da música.
O debate segue em aberto, mas uma coisa é certa: em tempos de perfeição digital, o humano ainda tem voz.
E para encerrar essa matéria, vamos conferir a performance que já se tornou um clássico moderno na carreira de Ed Sheeran: o vídeo Ed Sheeran - Shape of You (Live on the Honda Stage at the iHeartRadio Theater NY). Gravada em 2017 no iHeartRadio Theater de Nova York, a apresentação mostra Ed Sheeran sozinho no palco, utilizando sua pedaleira de loop para construir, ao vivo, toda a estrutura rítmica e harmônica da canção. É uma performance que sintetiza perfeitamente seu estilo: intimista, tecnicamente preciso e sustentado por tecnologia sem abrir mão da autenticidade.
Informações: Antena 1